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terça-feira, 6 de agosto de 2013

Outras Vidas: Ardenas (1944)


Sentou-se, sem saber, ao certo, onde estava.

Nenhuma lembrança, nenhum pensamento acudia sua mente. Fora tomado por um vazio avassalador. Nenhum eco de humanidade reverberava em seu íntimo... 

A cabeça se esvaziara para dar vazão às lágrimas; para que elas escorressem. Entretanto, coisa alguma ali escorria, fluia, porque um inverno, dos mais rigorosos, penetrava todos os homens. Nem lágrimas, nem sangue, nem amor escorriam na pele de quem quer que estivesse ali. Tudo era feito de gelo, pedra, pólvora e chumbo.

Aliás, o metal das armas e dos projéteis eram as únicas coisas quentes naquela floresta. As balas infindáveis, cuspidas pelos fuzis e pelas metralhadoras traziam o ardor que muitos procuravam desesperados nesses tempos de desumanidade... Sentir no corpo o calor desse inferno, antes da hora derradeira, soava como algo sublime, paradisíaco. Dos céus, desciam as bombas que, para muitos, transformaram-se no símbolo da compaixão pelos sofredores na Terra...   

Após as batalhas, avistara, nos corpos de companheiros falecidos, muitas faces costuradas por um sorriso sinistro. Nunca entendeu isso... ou melhor, nunca quis entender... Não tinha medo da morte, tinha medo da dor... A dor era sua insônia, o que lhe roubava o sono tranquilo. A simples lembrança da dor era o que deveria trazer aos homens o discernimento para que nada daquilo ocorresse. Todos iguais perante a alegria e a dor... Mas não. A ganância, a ambição tapava-lhes os ouvidos com ouro. A sanha de poder, o egoísmo de uns poucos arrastara milhares de vidas para um lugar escuro, longe de tudo que amavam... 

No acampamento, enfurnados nas barracas, os homens não passavam de uma tropa de mulas que pouco ou nada se importava com os motivos dessa guerra fratricida. A razão fora banida pela sobrevivência a todo custo e as circunstâncias venceram as resistências do absurdo, escondendo-se sob o rótulo de "normais". 

Soluçava embaixo daquele capacete - um telhado que nunca deixava o sol entrar. Chorava sem saber mais o porquê. Lágrimas rolavam petrificadas na face rosada pelo frio. Tanto frio, que os sentimentos mais nobres congelavam-se na animalidade que ressurgiu inteiramente livre dentro dele. De mente vazia, esquecera que era um ser humano. Tornou-se inconsciente de sua sempre frágil civilização. Sentia, luta após luta, sua farda crescer como os pelos de seu corpo... e cresciam em abundância... Se algum "civilizado" pudesse vê-lo, estaria, novamente, diante dum lobo - antes, um homem, devorado por si mesmo. A barbárie retornava sequiosa, brandindo a espada da lei do mais forte. Nessa altura da jornada humana, não havia anacronismos; existia sim, uma ainda não evolução. O homem está, há séculos, estacionado em suas chagas morais. Numa teimosia incurável dos erros que comete. Por isso, sofre e, como se já não bastasse o tanto que sofre, busca para si mais sofrimento, num vai e vem cíclico e masoquista.   

De mente vazia, não sentia mais o frio, a fome, a saudade, a tristeza, a camaradagem, nem o peso do corpo exausto, nem o peso das medalhas pela bravura, pelos que matou, pelos ferimentos que ainda sangravam, todavia, não escorriam... O branco do gelo continuava o único puro e imaculado... 

Permaneceria ali, sentado para sempre, se alguém não tivesse dado um forte tapa em seu capacete e ordenado com energia: "chegou a hora, rapaz! De pé, soldado!". 

A ordem retumbante serviu como uma chave, acionando uma ignição que lhe inflamou a alma. Levantou-se rápido, automático.  Sentiu a adrenalina percorrer-lhe as veias. Discretamente, engoliu seco.  Passou no rosto as mãos cobertas por luvas negras. Um pouco atrapalhado, ajeitou o rifle sobre o ombro. Verificou a munição. Olhou ao redor, ao mesmo tempo em que apalpava a farda para ver se não havia esquecido algo. Saiu apressado, trotando... 

Em meio a correria, aos gritos de sargentos e oficiais, ao ronco dos jipes e dos blindados, misturou-se aos demais na coluna que partiria para a linha de frente. Não houve cartas escritas deixadas para trás, exceto pegadas que desapareceriam em breve...  

Marchou. Marcharam...  

Mal saíram do acampamento, ouviu de um cabo novato que andava ao seu lado: "olhem só... começou a nevar...".


2 vozes:

Vanessa M. disse...

Excelente texto! Escreveste de um modo muito envolvente e interessante, fazendo uma perfeita reflexão sobre a humanidade e sobre as morais e valores que regem os homens desde os tempos mais remotos, de tal modo que me levou a refletir..
Realmente muito bom!

Um grande abraço

Renan Caíque disse...

Venho através do blog da Vane... e que palavras encantadoras aqui encontro! Meus parabéns!

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